A pausa que ouve o trem

Dizia a uma amiga dia desses que, às madrugadas, na velha casa repousada nas terras do interior, o vento pausa para ouvir o som do trem. É inerente. O ruído dos ferros chega manso com o tilintar da lamúria do frio, entra pelas pelas janelas e estoura num imponente apito que diz: "É carga! Ffffffffff..."
Apita mais umas três vezes. 
A madrugada, em silêncio, honra a saudade que o trem leva. E o tempo não passa triste no casarão, porque o coração é tomado pelo trem de histórias que ffffffffff... Flui como o vento, dançando com os ferros e as memórias do coração. 
Ando cuidadosa pelas madeiras da casa gelada que, também pausada, escuta o silêncio. O som do silêncio é doce quando o trem passa longe. E o meu coração embalado em momento de pausa, mais doce ainda. 
Passa o ruído dos anos na carga da vida com o trem de ferro. E o som daquela angústia que ffffffffff... Finda. Angústia finda quando o tempo pausa por causa do trem. Não há solidão, tristeza ou saudade na falta de tempo dos vagões da passagem mais linda. 
Aí o som desaproxima dos arredores. Parecendo uma valsa das horas a cessar. O som do apito do trem vai fu-fu-fu-fugindo lento. E retorna o som da angústia. E retorna o som do pesar. 
Meu coração quer partir num vagão ferroviário, porque traz carga intensa da cidade da estação. Mas o trem já foi, pro meu imaginário. 
E seguiu o som concreto. Ressoou o apito da madrugada. Voltaram as horas do tempo do nada. 
E o trem já vaga bem longe da estação. 

[20 de maio de 2023].