Livros na estrada

Ontem eu não consegui dormir por causa do balanço da estrada que a cama trazia pela manhã. Já passava das seis de um domingo sonolento e eu lembrava do sacolejar do carro do meu avô atravessando a via Dutra. No travesseiro, balançavam os pensamentos, embaralhados entre os fios dos meus cabelos que, em qualquer manhã também podem branquear. Lembrei do silêncio da estrada e eu no banco de trás, acomodada na janela ao lado de minha avó. 
Meu avô sempre seguia à frente, fazendo continhas diárias que organizavam o funcionamento das vidas. Na direção o Sr. Geraldo, homem simpático que conduzia, fechando um valor fixo para as idas ao hospital. 
Minha avó abria um livro maior, imersa em seu mundo no silêncio sereno. Levei comigo nas rodovias daquela época os meninos de Jorge Amado, de "Capitães da Areia", quando ainda Pedro Bala era um tanto mais velho que eu. Fiquei fascinada por uma praia que eu só conhecia em sonho. E as interrupções se davam quando precisávamos atualizar por qual rumo as vidas do chefe dos capitães ou de Dinah - de "A Tenda Vermelha" - estavam seguindo.
Ontem na cama eu não conseguia dormir pois as minhas lembranças não encontravam novidades narradas pelas leituras de minha avó. E me assombrou pensar que, ao abrir uma página, os escritos não ressoariam com a voz dela nos meus pensamentos. Eu li "A Tenda Vermelha" enquanto ela ainda estava por aqui, mas outras tantas aventuras ela só me deixou nas folhas e na memória distante entre a saudade e o sentir. 
Eu ainda posso me perder na estante. E me encontrar no balanço da estrada. Balanço sutil como a angústia da falta que passa apertada. 
Mas dormir plena entre as minhas histórias, talvez só na próxima madrugada....

[23 de julho de 2023].

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