O homem de uma música só
"Fui no tororó beber água e não achei..."
"Fui no tororó beber água..."
Fui dormir, num recorte da infância, em companhia de meu avô. Minha avó recebia uma amiga que arrastava a prosa pelas madrugadas na ocasião.
Madrugava ocupada e o meu coração entrando noite adentro em palpitação, porque quem cantava o mundo era ela.
E eu não sabia dormir.
E eu não sabia acalmar.
Meu avô, homem dos números, sempre soube que os números do relógio determinavam a hora do sono, diferente de minha avó que entendia as inquietações inconstantes do coração.
Agora estava ele lá, com uma menina pequena com olhos enormes estatelados madrugada adentro, aguardando por uma canção. Lembro que meu avô sorriu docilmente e disse algo como: "Hora de dormir.", como se o que determinasse o sono de uma criança pautada em inseguranças e angústias fossem os horários e não toda uma comoção.
Na sabedoria dos que não entendem, expliquei: "Não, vovô. Tem que cantar..."
Hoje, sabendo que meu avô decora perfeitamente datas, nomes de escalações de times, rotas, caminhos e números de telefones, mas não as canções, penso na dedicação. Na dedicação curiosa que foi aquela noite em que ele passou horas a fio cantando a mesma canção de ninar a fim de acalmar criança emocionalmente criteriosa, até minha avó chegar e me ver dormindo, como um anjo tranquilo que se adapta facilmente conforme a música toca.
[6 de junho de 2023].