Tempo de vidro

Eu escrevo desde muito nova porque a minha avó me ensinou que a escrita é uma maneira gentil de contar o tempo, assim como a leitura é um afago profundo nos nossos anseios, na nossa solidão.
Todo ano chega o dia 31 de outubro e eu me lembro do meu tio, porque é a data dele e ele se orgulhava por ter nascido no "Dia das Bruxas", embora sua fé aportasse nas bases que o mundo deu. 

Desde que ele virou som de festa no vento eu fico me perguntando sobre o que escrever nesta data; como uma passagem mística tradicional que conta a nossa história, todo ano, cada ano de um jeito. 
Não que eu precise escrever. Mas quero. 
Como ele não precisava ler as minhas coisas. Mas lia. E agora é o momento em que eu choro... 

Quando o meu tio virou lembrança de carnaval, eu caí num paradoxo profundo - despenquei - porque foi o momento em que eu mais escrevi na vida e no qual eu menos vi sentido em registrar o mundo em palavras porque não havia mais ninguém para ler. Não com o mesmo sentido e devoção. 
(Esse é mesmo o momento em que eu choro.)
Quando o meu tio virou canto de torcida, eu deixei minhas lembranças só pros pensamentos. Porque as palavras jogadas pararam de ter destinatário fiel. 

Mas hoje é dia 31 e eu achei uma anotação de um dos meus diários de infância, de quando minha letra era feia mas o mundo já me dizia que eu era adulta demais. A saudade imensa conta de um dos dias mais legais da minha trajetória até aqui, em que o meu tio-padrinho me levou no parque, subiu nos brinquedos, passou o dia comigo e à noite eu quebrei o tampo de vidro de sua mesa de jantar (que hoje fica na minha sala). 
São lembranças que eu não precisaria anotar porque passam frescas como filmes completos na minha mente. O próprio tempo me ensina que tempo de vidro não quebra nos murais de memórias. 

Mas é como dizia a minha avó: "A escrita é uma maneira gentil de contar o tempo." 
Espero que ele ainda me leia do lado de lá. Feliz aniversário, padrinho!

[31 de outubro de 2023.]

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