Inundações
Quando dava tudo muito errado na infância, era tão bonito. Me lembro das goteiras que cintilavam nas madeiras ocas da minha casa inteira mostrando que lar é floresta também. Eu dizia que eu era bicho de rio, de mata, de cachoeira. E atrapalhava os meus avós com os baldes e rodos, que tentavam conter a catástrofe. Depois eu vi que catástrofe é não poder brincar, é ter que resolver, sendo a parte pensante da vida, que não pode se contentar em só brincar nas goteiras.
Quando vinha tempestade daquelas mais estrondosas, eu sempre aflitava: "Ai, vó! E a gente que dorme na rua?". Mas era fácil enganar minhas angústias dizendo que, nessas horas, eles iam para um canto quentinho que a prefeitura guarda pros dias de chuva, lógico. E os bichinhos de rua também. Depois eu vi da janela o tanto de gente que molha na tempestade, no álcool, na lágrima de um tanto de coisa que ninguém quer resolver.
Quando pintaram a casa toda, uma vez, eu achei que era festa dormir todo mundo em colchões. (Acho que já contei isso por aqui.) Os quartos ficaram com cheiro forte, então a família inteira dormiu no chão de um cômodo só. Mãe, tio, eu, vô e vó; que riram quando eu disse: "Podiam pintar a casa todo dia, não?". A gente, adulto, passa a se incomodar com imprevistos da rotina que são novidades para a criança. Você pode até achar que criança se contenta com pouco, mas eu acho é que a gente é que desacostumou com a grandeza das coisas. Tudo é muito, sim. Talvez a gente é que se contente mesmo com pouco.
Hoje eu tô contando isso porque o meu apartamento alagou. Coisa de manutenção. Foi um dia exaustivo e eu fiquei olhando pras coisas molhadas. Secando e resolvendo, por horas. Nas primeiras horas eu virei um monstro do péssimo humor, não emiti um som, uma palavra, durante as primeiras passadas de rodo. Dessa aguaceira não escapou quase nada e tudo teve que sair de seu lugar por um instante. Achei minha coleção de revistinhas da "Turma da Mônica" encharcada. Lembrei da Malu pequena e pensei em quanto tempo as minhas revistinhas dormiram na caixa. "É preciso um imprevisto para eu olhar para as coisas valiosas que eu amo, sério?". Espero que não. Que não seja tarde. Vou dormir exausta, pensando no quanto a Malu pequena acharia o máximo esse dia que passou...
[27 de agosto de 2024].