Memórias fluidas

Já falei da vez em que minhas pernas viraram água de choro misturadas às lágrimas num dos dias mais tristes da minha vida? 
Eu me perco nas águas que passam sussurrando histórias. Se não falei, vou falar...
Minha avó dormiu num hospital triste tanto tempo. E eu não vi meu avô desgrudar nem por um segundo daquele lugar. Lembro de frames descompassados, como o meu tio (que também já não está mais aqui) dizendo a ela pra ficar em paz, que eu nunca estaria sozinha. 

Adormeceu por três UTI's diferentes, como uma jornada em estâncias, degrau a degrau, até parar ao lado da mesa de enfermagem, quando a situação estava mais crítica. "É o melhor lugar, vô. Aqui cuidam dela a cada segundo.", menti. 
Minha avó me ensinou a não mentir e o amor me ensinou sobre as exceções. 
Ela já não estava mais aqui quando os poucos sinais dos aparelhos infinitos ainda apitavam, e meu avô me pedia para cantar. Eu cantava ao lado do leito pra ele, que já mal escutava. E pra ela, que já mal vivia. 

Quando o médico passou e disse algo como "Sinto muito, agora é só aguardar." o meu avô não ouviu. Ali eu achei essa coisa de não ouvir direito uma proteção. Eu não chorei o tanto de água que eu tinha no peito por causa do meu avô, e expliquei direito pra ele depois. Acho que o olhar dele foi a coisa mais triste que eu já vi acontecer. 
Teve também meu outro tio, que não gosta de hospitais, que disse: "Como se despede, pra sempre, da própria mãe, que esteve ali a minha vida inteira?" Espero que ele não se importe dessa lembrança ficar martelando no meu coração. A identificação com o amor imenso que ele narrou me confortou naquele dia. 

Aí foi isso. No dia do velório eu chorei rapidinho no banho (que eu só tomei porque estava acabada) e deixei pra chorar o resto depois. Lembro do meu tio-padrinho confuso, escolhendo o caixão. Ele andava de um lado pro outro, limpava o rosto e derramava; enquanto eu não esboçava reação. 
Na igrejinha do convento, onde eu ia tanto com ela, na hora em que o caixão chegou eu disse que poderia carregar. Não deixaram. Eu insisti: "Deixa! Estou bem! Estou bem!". 
Ninguém deixou. 

E foi quando abriram o caixão que eu vi o rosto dela e toda a minha história. Eu correndo incerta na pracinha pros braços dela, enquanto aprendia a andar. O colo na cozinha, o samba no fogão. As noites, as novelas, o fim de tarde, jabuticabas, as saudades, as risadas e madrugadas a zelar por mim. As conversas, conselhos. Eu e ela: um espelho, no segundo de abertura daquela tampa. 
Foi assim que a minha perna virou água quando meu rosto desfez em choro. Eu caí, levantada depois por alguém que falou: "Acorda! Ela ia querer te ver bem!".

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