Lago negro do olhar
Encarei seus olhos na fotografia até eles virarem dois pontos num lago negro, mais turvos que o dia de sua partida. Dizem que toda fotografia se movimenta conforme os nossos anseios desmoronam. A foto me via mergulhar no inebriante afogamento de minhas saudades, que cercavam as cores como o lodo que fica na grama quando o céu chora no verão. Ainda há cheiro de chuva nos arredores do meu coração.
Agora, deitada na cama suja, tenho formigas saindo pelas extremidades, como na manhã em que brinquei na terra de um formigueiro julgando que o mundo ainda fosse doce demais para machucar.
As patas pequenas pesam nos meus pensamentos. E quando olho pro tempo, me desorganizei da fila, como se as minhas antenas não mais soubessem o caminho de volta.
Olho nos olhos de lago da fotografia e penso: "Será que você já sabe que cortaram o nosso jardim de verão?".
Penso nos dias que são lago no peito.
Nas patinhas pequenas que caminham sem rumo, de maneira pragmática, buscando sentido nos versos de meus passados. E cada gota de instante, para mim, é um profundo imenso, porque ainda me sinto pequena demais. Há poça enlameada refletindo o mar de angústias que não quero ver.
Tropeço nas folhas sopradas do jardim e caio nessa gota imensa que é o mundo que me faltou. Eu sopro o que lembro nas palavras das minhas memórias, que caem roxinhas na grama verde. Se um dia eu regressar ao ar, talvez eu seja fotografia num lago de instante também.
[25 de maio de 2023.]