Sexta-Feira da Paixão
Minha avó dizia que o meu bisavô, pai dela, morreu em uma Sexta-Feira da Paixão, e que isso era coisa de poeta. Naquele ano, a sexta santa foi "do Paixão", porque ele também gostava de uma boa brincadeira ingênua e bem-humorada. Ela também dizia que as Sextas da Paixão são sempre nubladas. Não me lembro de ter visto uma data dessas com um sol radiante.
Quando ela me contava histórias cristãs ela adicionava um misticismo bonito que enriquecia os detalhes, como se o mundo fosse mesmo poesia. Na adolescência eu comecei a aprofundar questionamentos que já trazia na infância porque, para além da fé, minha avó me ensinou a questionar. E, de fato, me lembro do quanto ela sentiu orgulho quando eu, já adulta, questionei o mundo que ela mesma me mostrou.
Voltando ao meu bisavô poeta, não o conheci pessoalmente, mas dizem que ele carregava a essência "dos Paixão". Minha avó dizia que ele era um forte representante do sobrenome, carregando características que estabeleciam diálogos; entre religiosidade e filosofia, ciência e poesia, sensibilidade e caos. E nesse campo a hereditariedade trabalhou de maneira coerente e voraz.
Meu bisavô era poeta, boêmio e chefe de família, que mudou de cidade para dar bons estudos às filhas. Em seus versos, ele sempre traz um Deus que acolhe nas raízes e traça um mundo que descansa no poder da arte. São versos que contam histórias. Das cotidianas às ancestrais. Eu o conheci através dos versos e das histórias, que é como eu me reconheço sempre que o dia parece nublado outra vez.
[18 de abril de 2025]