Areia movediça
Os cansaços dos dias me traduzem, mas o que me arrasta o olhar são as coisas profundas que marcaram a minha história. Os gritos das noites, as portas batendo, o tremor dos pés de minha avó. Aquela dor retorcida que a carregou até o fim da vida. As trocas de olhares, sussurros, os medos, abusos e o rosto cansado do meu avô. O medo do escuro de dentro da alma. O pavor do monstro que invade a casa e leva o amor. A certeza das incertezas. A constância das inconstâncias que batem janelas e quebram as vidraças mais doces da infância.
Meu maior medo na infância era de areia movediça. Eu acordava gritando que a cama estava afundando em lodo, na casa concreta de base fluida, que abraçava com mãos enormes e frias. Choravam as vozes nos corredores. E algum colo me pegava pela noite frágil - pedindo calma - porque "nada poderia afundar ali". Era mentira. Uma lama lenta e gelada tocava os meus pés tristes enquanto eu gritava os silêncios que só hoje eu sei traduzir.
A psicanálise me mostrou os sonhos com a areia movediça e todos os sufocamentos do peito consternado que eu não abri. O medo de não respirar me fez abraçar o ar de voar no circo, como uma ventania de oxigênio em oferta. Foi assim que eu aprendi a respirar. Num céu bem alto, com bastante vento. Bem longe da lama que enraíza minhas dores no chão. Também aprendi a me esconder no palco, entre as luzes que abafam os escuros dos corredores que eu ainda guardo em mim. Entre uma cena e outra, a luz apaga de uma maneira - hoje - bonita. Sem pesadelo. Quando eu não sou eu, a dor não vem me buscar.
E as coisas profundas que marcaram a minha história afundam como lembranças estranhas, mas eu fico nas escolhas coloridas que eu fiz. Num teatro de luzes, num circo de ventos, no riso sincero dos meus alunos que me ensinam a andar com os pés leves sobre o mundo. Com o colo eterno dos meus avós, que me acordam do pesadelo de lama. Com o olhar que encontrei no amor. E a força que vem da arte. Eu fico, na inspiração que é nascer do sufocamento para aprender a voar.
[Julho de 2025.]